Sobre diárias (2)
Sua indagação é de notável pertinência e aborda uma distinção fundamental no âmbito do Direito Administrativo, cujas raízes se encontram na natureza distinta do vínculo que cada um desses agentes mantém com o Estado.
A diferenciação de regimes para o pagamento de diárias a agentes políticos e a servidores públicos, embora possa parecer uma quebra do princípio da isonomia à primeira vista, possui fundamentação jurídica específica. Passo a detalhar os fundamentos que norteiam essa sistemática.
1. Natureza Jurídica das Diárias
Inicialmente, cumpre salientar que as diárias, em sua essência, constituem verbas de natureza indenizatória. Não se trata de remuneração ou subsídio, mas sim de um valor destinado a cobrir despesas extraordinárias do agente público que se desloca de sua sede a serviço ou em missão oficial. Tais despesas englobam, tipicamente, gastos com pousada, alimentação e locomoção urbana. A controvérsia, como bem apontado, reside no regime de concessão e comprovação desses gastos.
2. O Regime Jurídico do Servidor Público (Stricto Sensu)
Para o servidor público estatutário, o regime é pautado pela estrita legalidade e pela necessidade de comprovação do gasto. A Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, estabelece em seu art. 58: Art. 58. O servidor que, a serviço, afastar-se da sede em caráter eventual ou transitório para outro ponto do território nacional ou para o exterior, fará jus a passagens e diárias destinadas a indenizar as parcelas de despesas extraordinária com pousada, alimentação e locomoção urbana, conforme dispuser em regulamento.
A lógica subjacente é a de recomposição patrimonial. O servidor não deve ter prejuízo ao arcar com custos em nome da Administração, tampouco deve auferir lucro. Por essa razão, a sistemática de prestação de contas é rigorosa, exigindo a comprovação efetiva das despesas para que o erário seja ressarcido apenas do que foi estritamente necessário para o cumprimento da missão. Trata-se de um sistema de reembolso ou ressarcimento de despesas.
3. O Regime Jurídico do Agente Político
O agente político (Presidente da República, Governadores, Prefeitos, Ministros, Secretários, Senadores, Deputados e Vereadores) possui um vínculo de natureza diversa com o Estado. Não se trata de uma relação profissional e hierarquizada, mas sim de um mandato, de natureza política e transitória, para a representação da vontade popular e a direção superior da Administração.
Para estes agentes, a diária assume um caráter de verba indenizatória fixada em montante único e presumido. A legislação que institui a diária para o agente político parte da premissa de que o valor estipulado é suficiente e adequado para cobrir as despesas inerentes ao cargo durante o deslocamento, sem a necessidade de uma comprovação detalhada de cada gasto.
As justificativas para tal regime são múltiplas: Dignidade e Decoro do Cargo: Presume-se que as despesas de representação de um alto mandatário não se coadunam com a mesma sistemática de controle burocrático aplicada ao servidor em atividade técnica. Natureza da Atividade: As atividades políticas frequentemente envolvem uma dinâmica de gastos que não se formaliza por meio de notas fiscais (e.g., pequenas despesas de locomoção, custos de representação em encontros políticos). Subsídio como Parcela Única: A Constituição Federal (Art. 39, § 4º) veda o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória ao subsídio do agente político. As diárias, por sua natureza indenizatória, são uma das exceções permitidas, e a sua fixação como um valor global simplifica a conformidade com este preceito constitucional.
4. Controle e Constitucionalidade
A questão central não é a ausência total de controle, mas a sua forma. O ato que concede a diária ao agente político – ou seja, a autorização para o deslocamento – deve ser público, motivado e vinculado a um interesse público concreto. O controle exercido pelos Tribunais de Contas e pelo Ministério Público incide sobre a legalidade, a razoabilidade e a moralidade do ato de concessão da viagem, e não sobre o "varejo" das despesas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestaram em diversas ocasiões sobre a matéria, validando, em tese, a constitucionalidade dos dois sistemas, desde que os valores fixados para as diárias dos agentes políticos sejam pautados pelos princípios da razoabilidade e da moralidade administrativa (Art. 37, caput, CF/88), evitando-se abusos e desvios de finalidade.
Conclusão Destarte, em resposta objetiva à sua pergunta: sim, a prática está, em princípio, em conformidade com o ordenamento jurídico vigente. A distinção não configura, a rigor, uma ilegalidade ou um privilégio injustificado, mas reflete a dualidade de regimes jurídicos aplicáveis a categorias distintas de agentes públicos. Enquanto o servidor público tem sua despesa ressarcida mediante comprovação, o agente político recebe uma indenização de valor presumido por lei para o exercício de suas funções em trânsito.
Contudo, é imperativo que tal modelo seja fiscalizado para coibir excessos que possam transmutar a verba indenizatória em complemento remuneratório indireto, o que configuraria uma violação frontal aos princípios da moralidade e da economicidade que regem a Administração Pública.
Marcio Berbet, advogado e vereador.